21 junho 2009

(In)dependência

Lígia só queria dormir naquela tarde fria e chuvosa, e assim fazia quando foi despertada pelo choro e desespero de Sabrina ao telefone. Quase histérica, ela lhe contava que policiais haviam trazido a notícia de que Paulo estava morto, e que elas precisavam fazer algo a respeito, caso o corpo encontrado fosse realmente o dele. Ali, deitada, sentiu um estupor tomar-lhe o corpo e a mente: queria fazer algo, queria voltar a dormir, mas a única reação que conseguiu esboçar foi ficar com os olhos fixos na parede branca do quarto, alheia a tudo, pensando em Paulo morto.

Quando deu por si, decidiu que era hora de levantar e reagir, e vestiu-se para resolver o que fazer juntamente com Sabrina. Enquanto vestia uma calça e jaqueta pretas, pensava que talvez pudesse ser verdade, talvez Paulo estivesse mesmo morto, talvez tivesse merecido morrer, talvez não… sua mente andava em círculos.

Chegando à casa de Sabrina, encontrou-a na sala, aos prantos, transmitindo o ocorrido à Neide, sua irmã, pelo telefone. Foi ter com o marido dela, Roberto, na cozinha, que explicou detalhadamente os acontecimentos daquela manhã enquanto tomavam um café e fumavam. Lígia ouvia tudo em transe; aquilo não estava acontecendo com ela, Paulo não devia estar morto, não assim. Saiu do transe quando Sabrina apareceu, mais calma, perguntando o que fariam a respeito; discutiram o que fazer e, depois de conseguir falar com Júnior, ficou decidido que Neide ficaria com Roberto e as crianças, enquanto elas e Júnior viajariam até Ubatuba para reconhecer o corpo. Não concordava com a ida de Júnior, porém nada pôde fazer diante da insistência de Roberto, que dizia que era melhor ter a companhia de um homem, mesmo que fosse o Júnior. Em seu íntimo, ninguém e Júnior era a mesma coisa, afinal, ele só era uma presença física… e ela pensava que a presença talvez compensasse a falta de todo o resto naquele ser. Era fraco de espírito, de caráter, não tinha personalidade, tampouco alguma espécie de atitude diante das coisas. Um maricas. Mas iria com elas como elemento figurativo, fazer o quê? - já estava decidido. Resignou-se e foi checar e abastecer o carro, enquanto o aguardavam.

Ambas já estavam demasiadamente aborrecidas quando Júnior chegou. Sabrina reclamou da demora e foi ter com aquele estafermo, enquanto Lígia se despedia de Roberto, garantindo que Sabrina ficaria bem, e que tomaria todas as providências necessárias em relação a Paulo. Isso se fosse o Paulo mesmo… pensava, dando a partida no carro.

Durante a viagem pouco conversaram. Júnior vez ou outra balbuciava algo sobre Paulo e Sabrina parecia absorta em sua tristeza. Lígia reclamava do frio e da chuva que insistia em não cessar; vez ou outra soltava alguma pérola do seu humor mordaz sobre Paulo, relembrando histórias. Sabrina ria, porque apesar da desgraça, o humor de Lígia era assim e ela também sofria; Júnior ria também, mas ria sem saber do quê. Júnior era assim.

Quando estavam na altura de São Luiz do Paraitinga, Lígia decidiu parar o carro em um posto, esticar as pernas, tomar um café e fumar mais um cigarro. Enquanto Júnior e Sabrina comiam e conversavam, ela fumava e pensava em Paulo, em tudo que havia vivido com aquele homem. Ele costumava ser sempre o mais animado, ria de tudo, e era querido por todos. Na verdade, as pessoas nutriam um misto de pena e amor por ele, dado o seu comportamento destrutivo, vícios, vida errante e temperamento dócil. Para todos, era o típico caso de pessoa que só fazia mal a si mesma. Menos para ela, pensava. Conhecia bem o lado sombrio de Paulo. E realmente desejava que ninguém mais tivesse conhecido, ou sequer desconfiado de que talvez ele existisse. Quando pensava nisso, foi interrompida por Júnior dizendo qualquer asneira. Seu cigarro havia terminado, era hora de voltar para a estrada e descer a serra. E a chuva não dava trégua, provavelmente pegaria neblina na descida.

Quando chegou finalmente na descida da serra, não havia chuva nem sequer neblina. Só a pista ainda molhada e o tempo um pouco mais frio. Desceu sem problemas, sem piadas, sem risos. Só com o silêncio dentro daquele carro. E o espectro de Paulo rindo no espaço que havia no banco de trás. Rindo para ela, rindo dela - mais uma vez ele impunha sua vontade e ela nada podia fazer.

Já em Ubatuba, Sabrina foi indicando à Lígia que direção tomar para encontrar o restaurante de Lucas, patrão e amigo de longa data de Paulo, que havia notificado a polícia sobre seu falecimento, a fim de que encontrassem sua suposta família.

Não demoraram muito para achar o local, e foram ao encontro de Lucas. Nesse momento, Lígia caiu em si de que o talvez havia se convertido em uma verdade. Lucas sabia muito sobre Paulo, e contou sobre os últimos tempos dele por aqueles lados, o vício em cocaína e bebida; o fato de Paulo dizer que não tinha uma família, somente uma filha no Canadá que ele não conhecia e uns parentes distantes; as noites que passou na rua; a passagem por uma clínica de reabilitação; sua redenção quando se encontrou em uma igreja evangélica depois da temporada na clínica. Contou também que Paulo voltaria a trabalhar para ele naquele dia, não fosse o acontecido. Ele havia conversado com Lucas na noite anterior e tinha acertado tudo para começar no dia seguinte na gerência daquele estabelecimento. Feito isso, foi para a casa de um amigo que também trabalhava para Lucas a fim de dormir. E assim o fez. Durante a madrugada, o amigo ouviu um barulho estranho vindo da cama onde Paulo dormia e o chamou. Diante da negativa ao chamado, levantou-se e acendeu a luz. Deparou-se com Paulo envolto num cobertor, sentado na cadeira ao lado da cama, com o rosto e corpo paralisados. Estava morto, teve um infarto fulminante.

Sabrina e Júnior ouviram tudo que Lucas disse estupefatos, e Sabrina contou a verdade a Lucas. Que Paulo tinha deixado os irmãos e o resto da família há dez anos e não fazia questão de procurá-los e muito menos deixava que eles o encontrassem. Só aparecia quando e para quem queria. Sabrina disse que não gostava, mas respeitava o direito do irmão. Chorou quando soube do vício e da reabilitação. Lígia tentava confortá-la, explicando que foi uma escolha dele. E Júnior observava a avenida da praia com o rosto inexpressivo de sempre.

Estava quase anoitecendo quando Lucas explicou a localização do necrotério onde estava Paulo e fez umas últimas recomendações. Os três seguiram em direção ao necrotério. E Lígia só pensava em Paulo. Morto. Aqueles olhos negros sem vida, o sorriso e o riso paralisados. Morto. Paulo, o homem que mexia com o que ela tinha de pior dentro de si. Que sugou muito do que ela tinha de bom e a tornava cruel, mesquinha, mentirosa, suja. Que nutria uma paixão doentia por ela e que a seu modo, a fazia corresponder. Tudo isso com aquele olhar petrificante e sorriso perverso. Quantos anos havia desperdiçado com aquele homem? Quantos homens depois dele havia punido, transferindo o ódio que sentia por Paulo a eles? Quantas vezes aquele homem conseguiu dominá-la e deixá-la a mercê de seus caprichos? E agora ele estava morto. E ela não conseguia esboçar nenhuma reação diante disso. Paulo… o homem que a transformou naquele espectro de mulher, morto. Parecia tudo muito surreal. E Lígia se calou, não riu, não sentiu. Só queria ver Paulo. E foi sem ouvir ou responder a ninguém até o necrotério.

Chegando lá, foram identificar o corpo. Lígia olhava tudo com uma curiosidade doentia, nunca havia passado por isso; enquanto Sabrina chorava e rezava para não ser Paulo, esperando um milagre. Júnior não esboçava reação ou sentimento, estava lá apenas para cumprir uma mera formalidade.

Foram levados até a geladeira onde se encontrava o corpo por um funcionário, que falava e explicava tudo com muita calma e naturalidade. Lígia pensava em quantas vezes ele já deveria ter feito isto, enquanto ele abria a geladeira calmamente. Puxou a gaveta onde se encontrava o cadáver, devidamente colocado dentro de um plástico azul. Quando perguntou se podia abrir o saco para mostrar o cadáver, Sabrina segurou com força no braço de Lígia e assentiu com a cabeça, enquanto Júnior se afastava um pouco mais das duas na tentativa de talvez sumir dali.

O cadáver que se encontrava naquele plástico era Paulo. Os olhos negros, um sorriso torto decorrente do infarto. Os cabelos escuros e já ralos, a pele branca, o peito todo costurado com pontos grandes decorrentes da necropsia. Em nada lembrava o Paulo, sempre sorridente, animado. O Paulo que contava piadas. O Paulo dos amigos, carinhoso, leal e extremamente cordial. O Paulo de Lígia, doentio, mesquinho, vil. O Paulo de Sabrina, irmão querido e desajuizado. O Paulo de Júnior, que nem se importava, só não queria estar ali. Era só mais um número, um pedaço de carne gelada e que iria apodrecer, que tinha sido registrado como Paulo. Só isso.

E diante da situação, Sabrina chorou, a dor pela perda do irmão era lancinante. Nos braços de Lígia, soluçava e apertava seus braços. Júnior chorou também, um dia iria morrer, e sentiu medo. E Lígia consolava Sabrina, pensava que Paulo estava morto; e diante do sofrimento sincero de Sabrina, começou a chorar. Não sentia dor em ver Paulo morto, sentia dor em ver Sabrina sofrer e sofria junto com Sabrina. Paulo morto e no inferno devia estar olhando as duas, pensava. Devia estar rindo e se acaso topasse com Lígia naquele momento, sorriria para ela. Talvez a fizesse novamente escrava de seus desejos. E no meio da dor, Lígia sorriu. Finalmente estava livre de Paulo. Diante do corpo sem vida, havia se tornado de novo mulher. E uma mulher boa, doce, meiga. Livre.

20 junho 2009