Depois de várias vodkas, Laís foi parar naquele inferninho. Naquele dia ele estava assustadoramente lotado; ela tinha a nítida impressão de que ia perder o ar a qualquer momento no meio daquele monte de corpos se esbarrando, roçando uns nos outros. Um odor fétido de esgoto se espalhava pelo ambiente, o que tornava a sensação claustrofóbica maior ainda; ela morreria e apodreceria ali mesmo. Talvez depois de alguns dias alguém achasse sua carne pútrida ali, ou talvez ninguém a notasse, no meio de tantos corpos que provavelmente putrificariam ali também.
As pessoas ali presentes riam umas para as outras, um riso quase diabólico, e dançavam. A música em si não importava, a coreografia era sempre a mesma independentemente da batida; o importante era o encontro dos corpos, as peles colando pelo suor, as bocas roçando umas nas outras, o encontro de hálitos de bebida azeda e cigarro.
Vagou perdida por ali durante um tempo incerto, tateando corpos, procurando um copo, zonza pelo barulho. Num dado momento, sentiu uma mão gelada puxando-a pela cintura com força. Sem se virar, sentiu um corpo masculino atrás de si e uma língua áspera percorrendo a nuca nua. Tentou se desvencilhar daquele corpo, sem sucesso. Era mais forte que ela e parecia que quanto mais força fazia, mais ele a dominava. Numa última tentativa de se desvencilhar e ver o rosto de quem a dominava, mordeu seus braços e sentiu seu sangue na boca, o gosto na língua, um misto do salgado do suor e de um amargo desconhecido que jamais lembraria o sabor de sangue. Sentiu suas pernas bambearem - sua resistência acabou ali -, o veneno do corpo dele a tinha tomado por inteiro e ela desfaleceu nos braços dele.
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Ele carregou aquele corpo morto nos braços por horas a fio, numa caminhada cega e sem destino aparente. Naquele inferninho ele havia deixado todo o seu passado, e o dela também. Aquele lugar nunca mais existiria para nenhum dos dois; a partir do momento em que achasse o destino, todo o esboço de vida anterior se apagaria da memória dele; a dela desapareceria junto com o efeito do veneno.
Sentiu os pés doerem, sangravam. Mas era reconfortante saber que os braços ainda eram fortes o suficiente para carregá-la. Apressou o passo, ela começava a dar sinais de que logo voltaria a si.
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Laís não sabia como havia chegado ali, mas estava num barzinho com as amigas. Elas riam desse fato, diziam que ela havia bebido demais naquela noite, mas que logo ela se lembraria. E se arrependeria, como todos os bêbados fazem. Ela sorriu para as meninas e resmungou baixinho alguma coisa incompreensível, sua cabeça latejava.
Decidiu se levantar da mesa e ir até ao banheiro, talvez lavar o rosto aliviasse um pouco. Antes de se levantar, observou bem o lugar. Era agradável, o ambiente iluminado, a atmosfera aconchegante, um saxofonista tocando no palco improvisado no meio das mesas. As pessoas conversavam animadamente, sorriam. Alguns casais se arriscavam a dançar ao som envolvente na pista. Sentiu-se animada e levantou-se em direção ao banheiro. No meio do caminho sentiu uma tontura, e para não cair, apoiou-se em uma cadeira. Sentiu uma mão macia segurando sua cintura, mas não teve forças para virar-se e ver o dono daquela mão. Teve a sensação de estar segura ali, naqueles braços que agora envolviam sua cintura. No momento em que viu as cicatrizes naqueles braços, sentiu a respiração dele em sua nuca. Sorriu. Sabia que havia encontrado a pessoa certa, mas não sabia o porquê. Virou-se: ele sorria e olhava com curiosidade para ela. Conversaram, seu nome era Marcelo e ele a estava observando desde a hora em que chegou lá. Tinha a impressão de que já a conhecia e tinha ido atrás dela justamente para perguntar isso quando ela sentiu-se mal. Ela o agradeceu e disse que o mal-estar já havia passado. Ocuparam uma mesa vazia e continuaram conversando animadamente noite adentro; ela até esqueceu as amigas, que saíram dali sem dizer palavra para não atrapalhar o momento dela. Ele a levou para a casa dele, passaram o resto da noite juntos. A primeira noite do resto da vida de ambos, que a partir dali se tornou uma só vida.
Laís escuta Lola Beltrán? Será?
ResponderExcluir;-))
"Sem se virar, sentiu um corpo masculino atrás de si e uma língua áspera percorrendo a nuca nua."
ResponderExcluirAmei isso!
Um texto altamente pós-moderno. Passado e futuro....
Uma espécie de reencontro...Reencarnação...
Passado e presente fundindo-se... Uma fusão de tempos, corpos, desejos, sentidos... Um presente q era futuro... É isso que nos proporciona esse diálogo em dois, três tempos.... Com o ontem e com o amanhã, que agora é hoje... Uma premonição. Uma certeza?