Ela não conseguia se lembrar do que havia acontecido ordenadamente na noite anterior e isso a perturbava. Estava jogada ali, na cama, há quanto tempo? Não sabia. Não sabia onde estavam suas roupas, a chave do carro, da casa. Decidiu levantar-se dali e o fez rapidamente. A cabeça pesou, as pernas bambearam, caiu desfalecida na cama. Tentou respirar compassadamente, o sangue foi voltando a circular aos poucos. Sentiu-se firme o suficiente para levantar da cama, só que dessa vez lentamente. Foi até ao banheiro, lavou o rosto na vã tentativa de recuperar a consciência - só conseguiu recuperar suas chaves que estavam em cima da pia junto com um bilhete. Leu com muito esforço, as letras embaralhavam-se em palavras sem sentido. "Lembre-se apenas dessa noite, o resto não tem mais sentido." Que noite, que resto?- puta que pariu, não se lembrava nem de como havia chegado ali, quanto mais do resto!
Voltou ao quarto, pegou uma camisa dele no guarda-roupa e vestiu-a; o corpo já começava a responder às ordens do cérebro. Foi até a sala, suas roupas estavam espalhadas por ela. Recolheu-as e decidiu ir embora, já que não havia mais ninguém ali. Entrou no elevador, onde um senhor de uns 50 e poucos anos ficou olhando para ela com uma curiosidade doentia. O que foi, vovô? Nunca viu nada parecido? pensou, - provavelmente o senhor nunca havia se deparado com uma mulher descabelada, vestindo apenas uma camisa, descalça, segurando uma muda de roupas e um molho de chaves. E para seu azar, o elevador demorava a descer do décimo sétimo ao andar térreo. Estava ficando irritada com a curiosidade dele, quando o senhor decidiu quebrar o gelo:
- Você é nova no prédio?
- Não, senhor. Apenas visitante.
- Ahn. Do 173, não é?
- Sim.
- Mais uma das festas de arromba do Alberto, não?
- É, o Beto sempre foi bom em comemorações.
- O condomínio que o diga...
O elevador parou no décimo terceiro. Uma senhora com uma criança de colo entrou e a olhou com a mesma curiosidade, só que com um ar de reprovação. Cumprimentou ela e o senhor grisalho e permaneceu calada, ninando a criança. O senhor voltou-se para ela:
- Mais uma das festas do Alberto ontem, você percebeu?
- Só ouvi um buchicho quando a polícia apareceu. Mas é o habitual, não é?
- É. Esses jovens...
- Bom, pelo menos teremos assunto para a próxima reunião no condomínio.
Ela observava os dois e só pensava que queria estar em outro lugar. Povo mais desprovido de vida própria, pensou. Sua cabeça doía demais para dizer qualquer coisa aos dois, mas sua memória já tinha voltado ao normal. E pensava em nunca mais voltar ali, pelo menos não sem usar uma peruca e óculos escuros para não ser reconhecida - a situação em que se encontrava naquele elevador era vexatória demais. Sobre o Alberto, só conseguia se lembrar de quão canalha ele era, de quantas vezes ele a tinha feito esperar sem aparecer, ligar ou se desculpar depois. Pensava em quanto gostava dele e em quanto era masoquista; se sentia miserável por isso, mas tudo mudava quando ele aparecia no escritório trazendo flores e a convidando para jantar.
No dia anterior, Alberto havia combinado com ela que haveria uma festa no apartamento dele para comemorar uma promoção que havia conseguido; a pegaria no escritório no final do expediente. Como sempre, ele não chegou no horário combinado e ela ligou dizendo que não precisava mais ir buscá-la, ela iria para casa e depois para o apartamento dele. E assim ela fez.
Quando chegou, todos os amigos dele e alguns em comum estavam lá. Havia muita bebida, um som rolando ao fundo, abafado pelas conversas animadas e alguns petiscos. Ele estava muito feliz e a abraçou, disse que naquela noite estava especialmente bonita e foi logo apresentando ela a todos que ainda não a conheciam. E ela passou a noite toda entre uma conversa e outra, todas regadas a muita vodca com gelo e limão - sua bebida preferida -, enquanto ele se desdobrava para dar atenção a todos, inclusive para ela, o que era um pouco atípico, mas era dia de festa.
No meio da noite, Alberto foi chamado por um dos convidados para resolver um problema lá na portaria do prédio - um casal havia bebido demais e o marido discutia com a mulher porque um outro convidado estava se insinuando para ela; esse convidado interviu, dizendo que estavam só conversando e que não havia nada demais, quando levou um murro certeiro no rosto e caiu, zonzo. Quando Alberto chegou na portaria, os dois homens se engalfinhavam e a turma do deixa-disso estava tentando apartar a briga, sem muito sucesso. E antes que a briga se tornasse uma confusão generalizada, uma viatura da polícia militar apareceu na portaria do prédio, havia sido chamada por um dos condôminos. Os ânimos se acalmaram, e depois que explicaram o ocorrido para os policiais, os convidados briguentos foram embora e tudo voltou ao normal. Quando voltou ao apartamento, Alberto a viu conversando animadamente com dois amigos seus do serviço e deu um jeito de tirá-la dali. Ela percebeu o ciúmes e sorriu por dentro. Passou o resto da noite na companhia dele.
Os últimos convidados se foram no meio da madrugada e os dois ficaram a sós no meio dos restos da festa. Alberto percebeu que ela havia bebido um pouco demais e não a deixou pegar as chaves do carro; na manhã seguinte poderia ir embora, quando já estivesse melhor. Ficaram conversando sobre futilidades até o momento em que ela mudou o rumo da conversa para os dois. Ele disse que a amava e que pretendia ficar com ela enquanto aquele sentimento durasse. Ela rebateu dizendo que não sabia que tipo de amor era aquele, em que só ela se doava e ele só recebia. Acabaram discutindo e ela decidiu ir embora. Quando estava saindo do apartamento, sentiu ele a pegar pelo braço com força e o mandou soltar. Ele não o fez e puxou-a para si. Beijou-a.
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