22 setembro 2007

Ele

Formávamos um desses casaizinhos perfeitos convencionais: ambos trabalhavam fora, eram bem-sucedidos e estavam sempre felizes. Tenho que admitir que Daniel sempre foi um pouco além das expectativas de qualquer mulher, ajudava nos afazeres domésticos, era paciente nos meus períodos de TPM e um ótimo amante. E como todo casal perfeito, tentávamos manter todo o estresse que o trabalho de ambos gerava bem longe de casa. Nos finais de semana costumávamos sair, viajar ou reunir os amigos em casa pra jogar conversa fora e beber. Eram bons tempos.

Nossa primeira crise aconteceu quando Daniel teve uma crise de estresse por conta do trabalho. Ele era incapaz de dividir seus problemas com quem quer que fosse e não costumava falar muito quando algo o incomodava. Chegava em casa desanimado, jantava, tomava banho e dormia. Às vezes conversava sobre amenidades e ria, mas não era a mesma pessoa. Tentava conversar, saber o que estava acontecendo e ele simplesmente me dizia que ia passar, que não queria falar sobre isso. Tive muitas noites solitárias nessa época, ele se deitava e não dizia palavra, mal encostava em mim, vivia cansado demais. Numa dessas vezes, me aninhei no peito dele enquanto dormia e acabei adormecendo também. Acordei com ele chorando e dizendo que me amava. Naquela noite ele contou tudo o que estava acontecendo, a pressão no trabalho, o medo de não ser reconhecido e seus planos de mudar para outra área, para alguma coisa que não o preocupasse tanto. Sabia que estava sendo relapso comigo e temia que eu o deixasse. Conversamos bastante e a partir dali resolvemos muita coisa. Voltamos a ter dias felizes.

Uma vez decidimos que todo sábado seria o nosso dia pra fazer só o que gostássemos. Era o dia em que Daniel ficava me observando andar pela casa descabelada, seminua e descalça. Sempre assoviava e fazia um movimento com as mãos que significava pra lá e pra cá, em referência aos meus quadris, quando passava por ele. Eu sempre perguntava o que era que ele estava olhando e ele sempre mandava eu parar de rebolar. E ambos ríamos.
Gostava de observá-lo, compenetrado, lavando o carro - tratava aquele Astra preto como a 8ª maravilha do mundo, enquanto eu ficava olhando aqueles braços e ombros largos no sol. Às vezes eu resmungava que já estava bom, que o carro já estava limpo e era melhor ele parar, entrar e tomar um banho. Ele ria e entendia o recado... invariavelmente eu estaria esperando embaixo do chuveiro.
No mais, nossos sábados se resumiam a passeios, noitadas, tardes intermináveis jogando vídeo-game e discutindo quem jogava melhor. Às vezes passávamos o dia na cama, descobrindo alguma posição que ainda não tínhamos feito ou algum canto do corpo do outro que ainda não tinha sido explorado. Me lembro de um desses sábados... tinha passado a semana toda com vontade de comer amoras - me lembravam a adolescência - e não tinha achado em mercado algum. E Daniel veio me acordar cedo com um monte delas, trazendo o sabor de adolescência - sabor esse que resultou numa brincadeira que deixou nossos corpos e os lençóis pintados. Ríamos.

Não tivemos filhos, não quisemos adotar. Depois de vários tratamentos, descobrimos que eu era estéril. Daniel estava lá, me apoiou o tempo todo. Mas depois da notícia que jamais seria pai, seus olhos negros perderam um pouco do brilho. Eu nunca consegui fazer alguma coisa que recuperasse esse brilho e me resignei. A mulher da vida de Daniel não tinha o dom de ser mãe, mas mesmo assim ele fazia questão de reforçar que ela era a mulher da vida dele.

Tínhamos gênios difíceis e uma inteligência acima da média. O problema era justamente esse: tínhamos sensibilidade para coisas diferentes e Daniel era reservado no que dizia respeito a ele. Mas no que dizia a mim, sempre tinha um argumento para me fazer falar o que quisesse, para concordar com seus motivos e opiniões. Discutíamos bastante e parte da sensibilidade dele sabia que quando eu me calava ou dizia não, era hora de ficar na dele e me respeitar. E a outra parte sabia que quando eu perguntava alguma coisa, era porque incomodava. No que dizia respeito ao resto, tínhamos concordado em não questionar as convicções políticas nem as religiosas de cada um - nossas opiniões sempre divergiam e sempre saía faísca. Ah, não era permitido discutir sobre times também, o máximo que dizíamos era que além dos gatos, havia um porco e uma veada em casa. E geralmente nessas horas ele imitava um porco e saía correndo atrás de mim pela casa. E nos perdíamos em carinhos.

Daniel andou enjoado de mim por um tempo e arrumou uma amante chamada Lígia. Para minha surpresa, ela era oriental - Daniel nunca havia gostado de orientais, e trabalhava com ele. O caso durou uns três meses, e nesse tempo ele ficava até mais tarde no escritório quase todo dia. Mas se comportava como se nada estivesse acontecendo, era carinhoso e o sexo continuava bom. Um dia comentou com um entusiasmo diferente que Lígia era uma arquiteta muito competente, esforçada e... divertidíssima. Na hora, lancei um olhar fulminante e disse que queria conhecê-la, que ele deveria convidá-la para jantar conosco. Foi a única vez em que vi Daniel perder o jogo de cintura e a voz. Ele acabou me contando tudo e pedindo desculpas, enquanto eu só conseguia chorar. Percebi que amava Daniel mais do que podia imaginar. Mas mesmo assim me mudei para o apartamento de Simone, uma amiga solteirona que lecionava nos mesmos colégios que eu. Lígia pediu demissão na semana seguinte a minha saída de casa e tomou um rumo desconhecido. Fiquei sabendo depois que Daniel rompeu com ela na noite em que saí de casa.
Morei uns dois meses com Simone, tempo suficiente para colocar a cabeça no lugar. Não conheci ninguém nesse ínterim e nem reencontrei Rodrigo, só conseguia pensar no que sentia e pensar no que seria dali para frente. Um dia, Daniel ficou esperando eu chegar do colégio na porta do prédio a noite toda. Cheguei e o vi dentro do carro, sorrindo. Fui ríspida e perguntei o que fazia ali. Ele me disse que naquela noite eu voltaria com ele para nossa casa. E voltei. E recomeçamos.

Antes de Lígia aparecer, eu também andava enjoada de Daniel. Foi quando conheci Rodrigo, o professor de Matemática do colégio novo em que eu estava lecionando. Era um homem muito bonito, divertido e insistia em me notar. Conversávamos bastante e um dia ele me convidou para um café sem compromisso. Depois de muito pensar, fui e acabamos estendendo a tarde num motel. Na despedida disse que queria me ver mais vezes, eu sorri e concordei. Quando ele deu as costas, comecei a chorar, não pertencia mais a Daniel. Aleguei uma dor qualquer e não voltei para as aulas do período noturno, fui para casa. Depois de muito chorar, tomei uns remédios e adormeci antes de Daniel chegar. No outro dia, acordei com flores, café na cama e um Daniel preocupado. Tinha visto os remédios e queria saber o que havia acontecido. Inventei qualquer desculpa que ele acabou engolindo.
Ainda me encontrei com Rodrigo durante um tempo, mas acabei me enjoando dele também. Era um bom amante, boa companhia e nada mais. Daniel nunca me perguntou nada, suponho que nunca tenha desconfiado ou andava pensando demais em Lígia - eles começaram a ter um caso um tempo depois do fim do meu affair com Rodrigo.

Um tempo depois da minha volta, Daniel quis ter um aquário. Eu detestava aquários, mas concordei e fiz ele me prometer que jamais o colocaria no nosso quarto, não queria ter peixinhos dourados assombrando meu sono. Ele prometeu e riu, me chamando de esquisitinha. Achei que era só brincadeira, pois já tínhamos Apolo e Ártemis, um gato branco e uma gata preta que ele havia me dado de presente e que às vezes faziam uma bagunça considerável na casa. Mas um dia ele chegou com um daqueles aquários simples, com dois peixinhos dourados dentro. Colocou o aquário na estante da sala e me disse que aquele seria uma experiência; se ele conseguisse cuidar daqueles dois por mais de um mês, compraria um aquário de verdade, com tudo que tivesse direito.
Misteriosamente, o aquário não durou quinze dias. Ártemis não havia resistido ao instinto e caçou os dois peixinhos dourados, para meu desespero. Quando contei o que havia acontecido, Daniel riu e me disse que compraria outro aquário, só que colocaria no escritório dele, já que Ártemis não era muito receptiva. Nunca mais tivemos outros animais de estimação em casa que não fossem Apolo e Ártemis.

Um comentário:

  1. Ôrra diaxos! Eu ando achando certas narrativas tão verídicas que fico com nojo de terceiros, terceiras... Deu vontade de dar uns petelecos no Rodrigo e na tal da Lígia.
    Esse povinho que não sabe ficar na sua. Nojo!
    Porém, devo confessar, aqui em casa temos um pacto e nele consta esse quesito: "não questionar as convicções políticas nem as religiosas de cada um", daí sai faísca. Eu, de esquerda; ele de direita; eu, quase vegetariana; ele carnívoro e por aí vai. E quanto aos times, pedi pra ele não chutar cachorro morto e que só torceríamos contra o time um do outro, qdo estivéssemos no mesmo jogo, o que vai ser impossível. Eu tou na segundona, quase despenquei pra terceira; ele tá na primeira e vai de novo jogar pela libertadores. Ou seja: temos agora dois times: Santa Cruz e Grêmio. Hehehehe.

    Ah, e segundo ele eu sou a personagem do Veríssimo, 'a velhinha de taubaté', porque eu acredito em tudo. Certo Terto (essa é a minha concordância com ele, quando discordo, hehehe)!
    Beijinhs pra ti, amore mio.
    ;)

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