03 junho 2007

Desconstrução(a crônica do palhaço)

Ficou observando ele entreter as crianças com suas micagens e brincadeiras, imaginando quem poderia ser a pessoa por trás daquela roupa espalhafatosa e da maquiagem pesada. O perdeu de vista no meio da festa; outras pessoas chamavam sua atenção e conversavam com ela animadamente enquanto ela tentava dissimular seu tédio e fingia achar interessante o que lhe diziam. Não costumava gostar de reuniões sociais, ia somente para cumprir o protocolo com a máxima discrição possível. Chegava, cumprimentava todos, conversava um pouco aqui, outro ali e logo se desculpava e ia embora com a sensação de dever cumprido. Mas aquela figura havia chamado a sua atenção de maneira tal que desejava permanecer ali mais tempo, para talvez conseguir desvendá-la.
Enquanto entretia alguns conhecidos contando as últimas novidades da sua vida vazia, sentiu uma mão pesada em seu ombro e voltou-se para trás: era ele. Sorrindo, convidando-a para brincar no meio das crianças com um olhar que a impediu de negar-se. Estendeu as mãos para ele, que a levou até onde as crianças estavam. Fizeram mímicas, uma pequena pantomima enquanto as crianças gritavam e riam na tentativa de adivinhar, prestando atenção na encenação. Os olhares se encontraram várias vezes e ela gelava sempre que ele lhe dava as mãos; se tornava cada vez mais interessante descobrir o que havia nele.
As crianças foram saindo de cena aos poucos carregadas por seus pais - já era hora de o show terminar. Ela era uma das últimas convidadas ainda presentes - que ironia, logo ela - e ele preparava-se para ir embora também, seu trabalho já havia sido cumprido naquela noite.
Saíram dali simultaneamente para o estacionamento. Enquanto tentava abrir a porta do carro, sentiu de novo a mão pesada em seu ombro e virou-se: o mesmo sorriso e olhar penetrante, convidando-a dessa vez para uma brincadeira diferente, um jogo somente de adultos. Ela aceitou e ele explicou que antes precisava se livrar daquela roupa e da maquiagem. Ela afirmou que poderia parecer estranho, mas o queria assim. Ele gargalhou, deixando-a desconcertada, e disse que se ela queria assim, assim seria. Era estranho, mas por que não? Dali saíram.
Durante o percurso até a casa dela, tentava desvendar quem era aquele homem misterioso, que num momento era o mais doce e divertido com as crianças e num outro momento - exatamente naquele com ela - conseguia ser um tanto enigmático e lascivo, já que agora suas mãos pesadas se ocupavam das coxas dela. Ela fazia um esforço tremendo para parecer natural e não sucumbir; tentava desviar a atenção dele fazendo perguntas, que ele respondia com evasivas ou fazendo a mesma pergunta sobre ela. E sem a menor reserva, lhe contava em detalhes tudo que ele desejava saber, na tentativa de que ele se revelasse também. Em vão.
Quando finalmente entraram na sala da casa dela, encostou-a na parede e a beijou. Ela sentiu as pernas bambearem e o empurrou. Levou-o até o quarto, o fez esperar enquanto ia até o banheiro. Voltou de lá segurando uma toalha úmida nas mãos que passou no rosto dele, removendo toda aquela pintura. Ele sorria, e no íntimo pensava que ela era um tanto doida, mas a brincadeira parecia prometer. Não o deixava encostar nela e olhava para o corpo com curiosidade enquanto o despia. Quando se deu com ele nu diante dela, percebeu que nunca o desvendaria - mas ele já a tinha desvendado desde o princípio e era por isso que estava ali. Já havia montado e desmontado todas as peças daquele jogo, como um lego. Não restava mais nada a fazer. Ela suspirou. Sentiu as mãos pesadas, que a puxaram para ele. Beijou-o. Sucumbiu.

Um comentário:

  1. E ainda dizem que o palhaço, por trás de tanta alegria e euforia, é um ser melancólico. E eu até concordo com isso.

    Mas que esse se deu bem... AH!!

    ; )

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